Sobre O Amante: na literatura, no cinema, na vida
13/05/2014 11:41Maria das Graças Targino*
Os cineclubes constituem uma “benção” para os amantes da “sétima arte”. Destinados à projeção, análise e discussão de filmes, por meio de uma programação estruturada por seus próprios membros, mantêm intenção educativa. É o momento de participar de uma cultura audiovisual crítica, além de democrática e descentralizada. Todos participam da discussão, visando difundir o cinema nacional e internacional, através de ciclos temáticos.
Isto é o que ocorre com o Cineclube Olho Mágico, que funciona com o apoio da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Piauí, em sua sede, Teresina – Piauí. É nesse espaço que acontece o ciclo “Cinema e Literatura”, e num desses ciclos recebi a tarefa de resenhar o livro e rever o filme L'amant (“O amante”), fundamentado no romance homônimo da escritora, dramaturga e cineasta Marguerite Duras (1914-1996), com edição original (Les Editions de Minuit), de 1984, para nortear as discussões do grupo.
“O amante” (livro e filme) suscita, até hoje, polêmicas por seu conteúdo visivelmente autobiográfico e provocador. O enredo conta a história de uma adolescente francesa pobre e de apenas 15 anos que desde o primeiro encontro numa travessia ao longo do rio Mekong, se sente atraída por um aristocrata chinês 17 anos mais velho. Em Saigon, então, capital do Vietnã do Sul, colônia da França (hoje a capital do Vietnã unificado é Hanói), começam um romance proibido e repleto de tórridos encontros clandestinos, sempre na obscuridade e na sombra. O problema é que, mesmo dispostos a superar a diferença de idade e de classe social, econômica e cultural, o futuro dos amantes jamais será admitido pela sociedade colonial francesa. É o racismo europeu frente aos orientais na Indochina (região do sudeste asiático composta por Vietnã, Laos, Camboja, e, para alguns, Tailândia e Myanmar). É o racismo dos orientais frente aos povoadores / aos exploradores.
Se, no livro, o ritmo do texto chama atenção por frases curtas e repetição intencional de palavras, o que assegura certo encanto poético, o filme, apesar das discordâncias entre autora e diretor, retrata, com beleza ímpar, o despertar de um amor fadado ao fracasso. Isso justifica a tristeza e a agonia de cada encontro, impregnados todos eles por uma sensualidade quase tangível, retratada nas imagens do filme e imaginada na teia de palavras que compõem o livro. Por exemplo, no início, a personagem do filme diz algo mais ou menos assim, transcrito do livro: “Muito cedo na minha vida ficou tarde demais [...]. Entre 18 e 25 meu rosto tomou uma direção imprevista. Aos 18 anos, envelheci” (DURAS, 1985, p. 7).
A família monoparental (o pai morto é citado apenas duas vezes e sem qualquer ênfase) e em frangalhos evidencia não apenas a pobreza da menina, mas, sobretudo, a miséria afetiva e o desencontro de almas. No vilarejo vietnamita Sa Dec da província Tan Chau, a uma professora e mãe totalmente destruída emocionalmente, une-se a figura dos filhos – de um lado, o mais velho Pierre, ríspido, drogado e extremamente cruel; de outro, o mais jovem Paul, frágil e oprimido. Talvez seja uma remissão à simbologia bíblica dos irmãos Caim e Abel.
É interessante observar, além da solidão das mulheres de Duras, o fato de o homem mais velho e mais experiente ser, desde o início, completamente dominado pela menina. A fraqueza do chinês é tão visível que causa desprezo até dentre a família pobre e desgarrada. Apesar de exalar amor em todos os instantes, a paixão avassaladora não o transforma em herói. Em vez de lhe dar força para lutar, seu amor pela menina branca o reduz e o transmuta num personagem patético e flagrantemente diminuído em sua dimensão humana. Sua insistência vai até o final. Transcorridos anos e anos, finda a guerra, vividos casamentos e separações, filhos e livros, ele diz ao término do filme e do livro, neste caso, literalmente: “[...] que a amava ainda, que jamais poderia deixar de amá-la, que a amaria até a morte” (DURAS, 1985, p. 126).
Quando do lançamento do filme, a bela fotografia, sob encargo de Robert Fraisse, foi indicado ao Oscar, enquanto a trilha sonora, responsabilidade de Gabriel Yared, teve menção para o César, para quem não sabe, prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas da França. “O amante” também foi lembrado para o César de melhor filme estrangeiro, melhor direção de arte (Olivier Radot), melhor fotografia e melhor montagem, de Noëlle Boisson. Vemos, pois, que apesar dos embates entre a autora Marguerite Duras e a equipe do filme, transcorridos anos e anos, ainda vale a pena ser revisto, debatido e, sobretudo, “curtido” pelos amantes do cinema.
Por fim, é notável o recurso utilizado por Annaud, quando deixa espaço para a “protagonista” intervir em diferentes momentos, inclusive no início e no fim do filme, o que aproxima imagem e texto. Como Carlos e Guimarães (2013, p. 44) afirmam, “[...] No limiar do desejo e da paixão pela escrita, ‘O amante’ é um filme ousado não pelo que mostra, mas pelo que esconde”, ou seja, pela velada e, paradoxalmente, visível interferência que a literatura faz no cinema e vice-versa.
Fontes:
CARLOS, Cássio Starling; GUIMARÃES, Pedro Maciel. O amante. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2013. (Coleção Folha Grandes Livros no Cinema, 14).
DURAS, Marguerite. O amante. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 127 p.
* Maria das Graças TARGINO é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica - Espanha.
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